quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

nestes dias habito
as casas dos outros
(perfeitas esferas
em rota disjuntiva)

permaneço afásica
nos interstícios dos armários
onde cresço, devorando,
o sol esquecido nas fibras
da última primavera

é certo que não me mantenho
pois cedo me rendo à loucura
de medir espaços com o corpo
e, enublada por voláteis crispações,
acaricio as galáxias do tecto

tamanha navegação celeste
faz-se à cautela – em transverso,
só o escuro reconforta – mas é
tal a fremente obsessão pela lua
que rápido se cegam as linhas
rectas
                        em espiral
desço aos infernos pela mão
da serpentina felicidade.

expiro. na frágil luz embaciada
escrevo o meu nome
a frio.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Onde os reclames do coração se cruzam



Vincenzo Balocchi
 























A pele por fulgurantes
instantes muitas vezes abre-se até onde
seria impensável que exercesse
com tão grande rigor o seu domínio.
Não temos então dela senão rápidas
visões, onde os reclames
do coração se cruzam, solitários
e agrestes, reflectidos
por trás nos ossos empedrados.
Em certas posições vêem-se as cordas
do nosso espírito esticadas num terraço.
A roupa dói-nos porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.
Luís Miguel Nava, “Paisagem Citadina” 

terça-feira, 21 de dezembro de 2010



















O eco de mil sinos de prata
emudece
ante o labor da aranha


O tempo emudece
na cegueira do ar
na sua geografia nula
Que queres de mim
matéria insensível?
Nas coisas conhecidas
o verbo ser
emudece
Ana Hatherly, “O eco de mil sinos de prata”

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Dextera Domini

Aos domingos abriam as gargantas:
trocavam os corvos pelas pombas (ex-
piação cromática da culpa) e ficava.
Uma penumbra sobre as cabeças rendadas,
lembrança do quarto aferventado pela
carne. Eram acres, os santos encalhados
entre as abóbadas e o lambril, de cara
tépida e rugosa como um planeta.
Ela quieta ao fundo, na ponta esquerda
do banco mais canhoto. Um círio roxo.
Apenas os sapatos de verniz bicudo
se retorciam com os beijos das avós.
Cheiravam a sal e a minério, à negra
numismática que as encerrava numa
pálpebra de chumbo. E cantava.
Que bem passava por menina
de coro, por ser mais fácil
engolir bandos de anjos
do que implodir ave-marias.
Rezar em línguas.
A sua cabeça
numa bandeja de prata.
  

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Food grew cold on the table.


 






















We sat across the table.
he said, cut off your hands.
they are always poking at things.
they might touch me.
I said yes.

Food grew cold on the table.
he said, burn your body.
it is not clean and smells like sex.
it rubs my mind sore.
I said yes.

I love you, I said.
That's very nice, he said
I like to be loved,
that makes me happy.
Have you cut off your hands yet?
Marge Piercy, "The Friend"

domingo, 12 de dezembro de 2010

O medo apaga o amor?

O medo apaga o amor, só deixa os contornos do próprio corpo?

Maria Velho da Costa, Myra

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

denotam-se
as giestas e
os contrastes
de todas as madrugadas
em flor.
teimosamente
revemos os espaços
– os de dentro, os de fora –
tentamos esquecer os urros
daquele bicho dormente
que suspirando
despe as praias e alamedas.
sim, é verdade,
somos, sistematicamente
atacados pelas gramáticas;
mas falemos antes
dos inícios
e da palma da minha mão
onde habita uma aurora
a espernear, enraivecida
à espera que a noite
lhe faça romper as searas.
no parapeito da janela
ofega, esfomeado
o dia limpo de hoje.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A Flor da Tinta é Negra



A flor da tinta é negra
Mas nos dedos dele, adquire muitas formas
Uma abelha… uma palmeira… uma rapariga a cavalo
Um planeta regressando de um tempo longínquo
Uma bola de fogo acariciando os que entre nós são áridos e estéreis
Transformando a terra em chamas e em estacas de fumo


Quando abri o tinteiro
E fitei a tinta
Encontrei um génio adormecido lá dentro
Eu estava nervoso, a tinta manchou-me a ponta dos dedos
Tracei uma linha, depois outra
Tornaram-se ruas
E mais uma e outra linha
E chegaram os invasores
Um grupo de pobres veio defender-nos
O meu coração embriagado de orgulho e felicidade
Gaguejei um pouco
Divaguei um pouco
Ajudaram-me ou mataram-me os alfabetos
Queimaram-me a boca com balas
A tinta percorreu-me todas as veias
E o meu sangue correu nas veias da imprensa.

Abdel Karim Sabawi (poeta e jornalista Palestiniano)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

























What a terrible mistake to let go of something wonderful for something real.


Miranda July, No one belongs here more than you

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

En lo dicho, el proceso de lo dicho

Huyamos durante
Las noches enteras, mi amor…

las voces.
En otro lugar – todo irá bien
Sólo para que la mitad mía – la elijan amor mío, las noches enteras — .

El verano tiene todo su músculo recordándote.

No hay ningún lugar que no sea tu centro,
En lo dicho, el proceso de lo dicho, tu muerte en el medio como un caballo.


J. M. Antolín, “El Caballo”

(Este poema é dolorosamente belo…)

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Cortina que abre-fecha
a língua é
um itinerário
uma brecha
no flanco do longínquo
Ana Hatherly, “As palavras de papel”

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Frenética incidência

Desnorteemo-nos hoje, sem falta
na melancolia ascética dos dias grosseiros
que rudes passam a galope solto
trote trote trote. Um círculo de sangue.
Fixemo-nos no ângulo morto do espelho e
sigamos, noite adentro. São dez horas.
O coração bate, cem vezes por minuto
esquecido de outras síncopes bate,
pequeno e freneticamente belo.
Sigamos viagem, ângulo adentro,
ao longo das árvores que não são árvores
mas madeixas brandas de criança feliz.
Em suas mãos sonoras, caixa de música sem
bailarina, encontremo-nos hoje, sem falta,
e dancemos os dois na nossa terna sanidade
até engessarmos todas as cartas e bilhetes
de amor. Hipnoticamente olvidados
das minudências encravadas na epiderme,
dancemos, e sigamos em carne viva
até ao vértice do ciclone
onde calmamente nos sentaremos
contemplando, a melódica
explosão das estrelas.

Your sound caught in the glass




































I see you through two layers
of glass doors, your sound
caught in the glass before it can reach me.

Beth Baruch Joselow, "The steering wheel comes off in your hands"