terça-feira, 15 de novembro de 2011

“A minha casa tinha um segredo escondido no fundo do coração”


Bem sei que a culpa é minha. Primeiro construo casas, depois dedico-me a decorá-las e a fazer delas casas, apenas para depois as abandonar. Ainda por cima, vou-me embora e deixo portas e janelas escancaradas, tudo à mostra à mão de semear. Nada de especial valor, no entanto. Um candeeiro partido. Um livro velho. Uma chave enferrujada. Só minudências e insignificâncias, mas que alguém leva para o aconchego da sua casa habitada e que, à luz de uma surpreendente alquimia, consegue transfigurar este meu espólio demente num tesouro cósmico refulgente.
Para mim, há-de ser sempre um candeeiro, um livro, e uma chave, ainda por cima quebrados e comidos pelo tempo. Por me terem outrora habitado (durante um dia, talvez ainda agora), estão todavia inevitavelmente dentro de mim, tal como acontece com todas as coisas que nos entram pelas fissuras do corpo – segredos escondidos no fundo do coração. Nada disto é meu, mas apenas eu conheço a história do candeeiro que se partiu, só eu sei do cheiro do livro quando o folheei pela primeira vez, ou do brilho que a chave tinha antigamente – e que bem abria ela portas e janelas.
Com o tempo, aprendemos a entrar na casa dos outros, mesmo quando abandonadas. Aprendemos a deixarmo-nos à porta, a sermos espaço para a batida do relógio (ouve, como ele bate ainda), a medirmos a espessura do silêncio e o quebranto das paredes. O que aparenta ser passividade ou receptáculo mais não é do que abandonarmo-nos à música de um rádio antigo e deixarmo-nos tocar no mais fundo e límpido que, ainda assim, persiste. É lembrarmo-nos de nós nos outros pela mão de uma música que passa a ser nossa, como se alguém nos escondesse um segredo no fundo do coração.
Na minha casa, há-de haver sempre música, mesmo no silêncio. Deve, no entanto, ser ouvida com algum cuidado – os segredos esboroam-se com tanta (demasiada) facilidade.