Eram cinco da tarde quando alguém tocou à campainha. Entreabri a porta, algo agastada pela antecipação do que normalmente se segue a este toque: a salvação divina em folhetos desbotados, o desespero da nova tecnologia vendida de porta em porta. Conhece Jesus? Pessoalmente, não. Está satisfeita com o seu serviço de Internet? Nem por isso, mas só aqui estou de passagem.
Desta feita, a porta entreaberta deixou que duas meninas me inundassem a casa, num tsunami de perguntas e animação ensaiada. Faziam parte da AMI; olhos azuis e mãos brancas falavam sem cessar sobre a fome e as catástrofes em lugares distantes. Mas já ouviu falar, certamente? Ouvi, certamente. E nós aqui tão confortáveis, e basta um euro ou dois para calar a fome e arrancar os dentes às tragédias remotas. E eu, sem conforto nem dinheiro para lhes dar, apenas as minhas próprias catástrofes, tão comezinhas e aqui mesmo à vossa frente, já ouviram falar, certamente? Ouvimos, certamente, que fiz questão de partilhar. Pois também eu sei ser de Porlock e interromper os olhos azuis e as mãos brancas que, agastadas pela minha negrura melancólica – tão trabalhada quanto a sua animação ensaiada – suspenderam o seu tsunami e me pediram uma maçã. A mais nova ficara incumbida de testar a solidariedade alheia com este pedido, e assim lhes dei não uma, mas duas maçãs amarelinhas, bravo-de-Esmolfe, que não matam a fome nem arrancam dentes, mas cheiram a casa.
Enquanto fechava a porta, ouvia os ecos das catástrofes longínquas, repetidas à vizinha do lado, Mas já ouviu falar, certamente? Ouvi, certamente. Longe das cúpulas e do leite do Paraíso, regressei às minhas próprias catástrofes, retomando a sisífica tarefa de lhes cortar as unhas e escovar o pêlo. Pois as catástrofes querem-se mansas, domesticadas, de trazer por casa, não vão elas assanhar-se e saltar-nos ao pescoço, tornando-se estranhamente distantes.