quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

As meninas de Porlock

Eram cinco da tarde quando alguém tocou à campainha. Entreabri a porta, algo agastada pela antecipação do que normalmente se segue a este toque: a salvação divina em folhetos desbotados, o desespero da nova tecnologia vendida de porta em porta. Conhece Jesus? Pessoalmente, não. Está satisfeita com o seu serviço de Internet? Nem por isso, mas só aqui estou de passagem. 
Desta feita, a porta entreaberta deixou que duas meninas me inundassem a casa, num tsunami de perguntas e animação ensaiada. Faziam parte da AMI; olhos azuis e mãos brancas falavam sem cessar sobre a fome e as catástrofes em lugares distantes. Mas já ouviu falar, certamente? Ouvi, certamente. E nós aqui tão confortáveis, e basta um euro ou dois para calar a fome e arrancar os dentes às tragédias remotas. E eu, sem conforto nem dinheiro para lhes dar, apenas as minhas próprias catástrofes, tão comezinhas e aqui mesmo à vossa frente, já ouviram falar, certamente? Ouvimos, certamente, que fiz questão de partilhar. Pois também eu sei ser de Porlock e interromper os olhos azuis e as mãos brancas que, agastadas pela minha negrura melancólica – tão trabalhada quanto a sua animação ensaiada – suspenderam o seu tsunami e me pediram uma maçã. A mais nova ficara incumbida de testar a solidariedade alheia com este pedido, e assim lhes dei não uma, mas duas maçãs amarelinhas, bravo-de-Esmolfe, que não matam a fome nem arrancam dentes, mas cheiram a casa. 
Enquanto fechava a porta, ouvia os ecos das catástrofes longínquas, repetidas à vizinha do lado, Mas já ouviu falar, certamente? Ouvi, certamente. Longe das cúpulas e do leite do Paraíso, regressei às minhas próprias catástrofes, retomando a sisífica tarefa de lhes cortar as unhas e escovar o pêlo. Pois as catástrofes querem-se mansas, domesticadas, de trazer por casa, não vão elas assanhar-se e saltar-nos ao pescoço, tornando-se estranhamente distantes.


domingo, 12 de janeiro de 2014

Pós-troika


"When the water has receded, most things have lost their form. They lean in the direction the current went. Mud covers them."

William Carlos Williams, Paterson

sábado, 7 de dezembro de 2013

sábado, 23 de novembro de 2013

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Talvez um dia...


"I give up, in the nicest way."

... mas, por enquanto, ainda não.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Não diria que sou cega.
Antes me emudecem as mãos,
a sua filigrana bolorenta
do centésimo domingo.

São hóstias,
partidas em ricochete,
miosótis ou mariposas,
o que me sai da boca.

O filho, a luz,
uma palavra que nasce
dos joelhos, atrás
das feridas.

Dos filamentos,
uma hipótese com cem mil anos.
O aconchego das mandíbulas
ou talvez,
uma anáfora cintilante
contida
perfeita
imunda
como esta mão
que afaga a mácula
de todas as noites.
Há três anos que habito o rés-do-chão de um prédio com o elevador avariado. Todos os dias me atormenta um vento seco que sopra no quarto, na sala, na cozinha. Várias vezes procurei a sua origem, mas em vão. Sei que ruge aos cortinados e me esmaga a cara contra a parede, contra o sorriso fosco dos retratos cuja sinfonia não me canta. As casas fazem-se de cicatrizes e de memórias. Nesta, sou apenas uma sombra silenciosa que respira baixinho, engolindo cem explosões e luminosas partículas de sol. É talvez esta a beleza dos momentos que aqui habito: enfeitada pelo tilintar do sorriso das crianças lá fora, alimento a mais funda e refinada solidão, partilhada com uma mesa e uma cadeira. A confirmação do tempo sobre a pele.   

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

It rhymes and does not confirm

for Gerard Manley Hopkins

"Off the brown brink."

Over smog colored
embankments,

the same split
wings
aflutter,

the exhaustive, glancing
perusal.

It flashes
but doesn't gather.

It rhymes and does not
confirm.

Rae Armantrout, "Day"

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

E tudo se orientava pela sombra potencial do passado - uma sombra de meio-dia, que você não vê, mas sabe se guardar em segredo nas coisas, pronta para começar a vazar pelo chão assim que o planeta virar um pouquinho de perfil.

Adriana Lisboa, Azul-Corvo 

domingo, 29 de julho de 2012

Still alive inside the sentence

Glenn used to say the reason you can't really imagine yourself being dead was that as soon as you say, "I'll be dead," you've said the word I, and so you're still alive inside the sentence. And that's how people got the idea of the immortality of the soul - it was a consequence of grammar. And so was God, because as soon as there's a past tense, there has to be a past before the past, and you keep going back in time until you get to I don't know, and that's what God is. 

Margaret Atwood, The Year of the Flood

quarta-feira, 20 de junho de 2012

But we do language

"We die. That may be the meaning of life. But we do language. That may be the measure of our lives."


Toni Morrison

sexta-feira, 15 de junho de 2012

"Desire is the consciousness of a certain kind of emptiness that has to be filled."


Laurie Anderson

domingo, 27 de maio de 2012

Heart shape




"Apesar de o coração ser relativamente simples, a equação que está na sua origem é complexa."

quinta-feira, 24 de maio de 2012

E depois do FMI, Troikas, et al. (?)

"When the water has receded most things have lost their form. They lean in the direction the current went. Mud covers them."


William Carlos Williams, Paterson

Simetrias caprichosas



a figura parece
uma gota
em cada instante
a gota está
numa sequência de imagens
cair de uma estalactite
em cada instante
a gota está
numa posição que compensa
o equilíbrio dos anjos
em cada instante
a gota compensa
a tensão superficial
até que esta
se desprende
e

“O ponto onde se juntam os vincos é uma singularidade que, por ser uma estrutura musculosa, facilita a sua dispersão pelo vento. Excede o número máximo de singularidades. Deforma a figura.”

a gota é
uma superfície
de revolução

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Etymology gone m/bad


Les dents, la bouche
Les dents la bouchent
L’aidant la bouche
L’aide en la bouche
Laides en la bouche
Laid en la bouche
Lait dans la bouche
L’est dam le à bouche
Les dents-là bouche 

Jean-Pierre Brisset (1837-1923)

quarta-feira, 2 de maio de 2012