sábado, 24 de setembro de 2011

Se lhe pega a poesia

Nosso é só o espinho, o estrume, a unha cheia de terra. Sabendo que me ultrapasso eu digo a você, pra celebrar nosso caso, como disse o chefe islamita em discurso ao bispo, pra celebrar a surpreendente união de maometanos e cristãos numa comunidade indonésia, “nosso amor é como bosta de búfalo, cai mas não racha.” Como vê, nem o excremento é nosso, se lhe pega a poesia. Pura graça o que nos move. Vou é chorar de tanta boa pobreza.

Adélia Prado, Solte os chachorros

terça-feira, 20 de setembro de 2011

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

My own foreigness to myself


I am not fully known to myself, because part of what I am is the enigmatic traces of others.

Judith Butler, Precarious Life: the Powers of Mourning and Violence (2004)
Photo: Maura Sullivan

A craving for extraordinary incident

The most effective of these causes are the great national events which are daily taking place, and the increasing accummulation of men in cities, where the uniformity of their occupations produces a craving for extraordinary incident, which the rapid communication of intelligence hourly gratifies.

William Wordsworth, Preface to Lyrical Ballads (1800)

terça-feira, 13 de setembro de 2011

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

domingo, 11 de setembro de 2011

...a cityscape is not made of flesh*


Photo:Vincenzo Balocchi
* Susan Sontag, Regarding the Pain of Others (I beg to differ...)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Só porque algum nome lhe havíamos de dar

. . . a nós o que nos ilude é esta linha de vivos em que estamos, que avança para isso a que chamamos futuro só porque algum nome lhe havíamos de dar, colhendo dele incessantemente os novos seres, deixando para trás incessantemente os seres velhos a que tivemos de dar o nome de mortos para que não saiam do passado.

José Saramago, A jangada de pedra

terça-feira, 6 de setembro de 2011

I feel always tender in the wrong places*


Photo: Brooke Shaden
* Audre Lorde

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Y todo para sorpresa de nuestra ignorancia

La infancia no es un lago imperturbable
                     no tiene la lisura de un plato
                     es un valle
                     bordeado de irregulares riscos.

Caemos y ascendemos en ella
                     y todo para sorpresa
                                de nuestra ignorancia.

La infancia ataja
                     ataja todo
                                cualquier pelota.

Su decir, es un decir sí…

Hanni Ossott

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

The garden flew round with the angel,


The angel flew round with the clouds,
And the clouds flew round and the clouds flew round
And the clouds flew round with the clouds.

Is there any secret in skulls,
The cattle skulls in the woods?
Do the drummers in black hoods
Rumble anything out of their drums?

Mrs. Anderson's Swedish baby
Might well have been German or Spanish,
But that things go round and again go round
Has rather a classical sound.

Wallace Stevens, "The Pleasures of Merely Circulating"
Photo: Maia Flore

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Of instruction which does not become life

Modern man... has become a strolling spectator and has arrived at a condition in which even great wars and revolutions are able to influence him for hardly more than a moment... Thus the individual grows fainthearted and unsure and dares no longer believe in himself: he sinks into his own subjective depths, which here means into the accumulated lumber of what he has learned but which has no outward effect, of instruction which does not become life. 

Friedrich Nietzsche, Untimely Meditations (1876: só o emprego do masculino está desactualizado, porque o argumento...)
A noite faz-se no regresso às palavras simples, de cadência húmida e escura. Recolhe-se na hipotenusa das constelações, buscando o conforto na cratera do sono, onde habitam o sangue e a terra primeva.
Um resto de cinza amniótica.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

De pedra

". . . quantas vezes aconteceu mostrarmo-nos como quem somos, e não valeu a pena, não estava lá ninguém para ver."

José Saramago, A jangada de pedra

sábado, 23 de julho de 2011

Da alma

Ingmar Bergman, Persona (1966)

quarta-feira, 20 de julho de 2011

"I had no anxieties about artistic failure"

 

Na verdade, esquecera-se da perfeita dimensão conjugativa dos verbos, e os dedos estranhavam-lhe agora as arestas da sintaxe. A escrita encolhera-se e ficara de trazer por casa, pateta e triste, fechada num amuo de limpar os cantos. Os abismos da tarde, esses, passaram a fingir-se num vestido onde por vezes lhe dançava o Verão. Era Inverno.
A parca lucidez talvez viesse da atenção excessiva dada às coisas – toda ela das coisas, nas coisas – ou então daquele calor que subitamente se abatera sobre a terra, murchando as gentes num trigo frágil.
I’ll think about that tomorrow.
Por ora, os dias seriam passados de pé, como uma árvore sem ramos subitamente habitada por um formigueiro intravenoso.
“Para quando a escuridão?”
Como se o caminho indicado pelos joelhos fosse capaz de se desdobrar numa calçada de açucenas, tão mais sonante ao redor de si mesma.      

Foto: Maura Sullivan

terça-feira, 19 de julho de 2011

Because of the alarming nature of darkness

The lighting must be better protected than now. The lamps must be enclosed in a steel grid to prevent their being damaged. Lights could be eliminated, since they are never used. However, it has been observed that when the doors are shut, the load always presses hard against them as soon as darkness sets in, which makes closing the doors difficult. Also, because of the alarming nature of darkness, screaming always occurs when the doors are closed. It would therefore be useful to light the lamps before and during the first moments of the operation.

... (1942)

quinta-feira, 23 de junho de 2011


No número 51 do Boulevard Saint-Jacques

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Imitate the seamless heavens, lie
forehead lost in deepest dirt. My ear
is to your breast, I hear the grass
grow words. Its lips are yours, moving.

Tom Mandel, "Poem"

terça-feira, 24 de maio de 2011

Então, como se toca?


- Não é correcto tocares assim nas coisas - dizia-lhe a mãe.
- Então, como se toca?
- Com menos força, agarrando menos. Não te envolvas tanto.

Gonçalo M. Tavares, Jerusalém 
Foto: Maura Sullivan

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Pelo que me toca, responderei também, e mostrarei o que sei, pois estou cheio de palavras, e o espírito que está dentro de mim oprime-me.
O meu peito é como o vinho arrolhado, como vinho pronto a rebentar em odres novos.
Livro de Job, 32:17 – 19

terça-feira, 17 de maio de 2011

I have nothing to do with explosions*


*Sylvia Plath, "Tulips"
Foto (?)

If the past is an irreparable fact, the present can be a revisable fiction.


Harold Schweizer, Suffering and the Remedy of Art 

sábado, 7 de maio de 2011

quarta-feira, 27 de abril de 2011

your world//out of life

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segunda-feira, 18 de abril de 2011

sábado, 2 de abril de 2011


But then are we in order when we are most out of order.

William Shakespeare, Henry VI

and other / escape substances

To flourish we must absorb more than we exude.
It is normal therefore for the body to perish.
But much does drip and escape from the corporeal
tissues and we use this excess to make belief and other
escape substances.

Lisa Robertson, "Notes for Temporary Horizontal Restaurants - Note 2"

quarta-feira, 30 de março de 2011


To love makes one solitary, she thought.

Virginia Woolf, Mrs Dalloway

Foto: Virginia Woolf , usando um vestido da sua mãe

terça-feira, 22 de março de 2011


Poetry may or may not work out its own salvation in a man [or in a woman], but it comes only to those in dire imaginative need of it, though it may come then as a terror.

Harold Bloom, The Anxiety of Influence

quinta-feira, 17 de março de 2011

segunda-feira, 14 de março de 2011

Escrevo solo e digo nuvem

O rosto enfiado na terra
escrevo solo e digo nuvem.
Solo & subsolo, conluio
amoroso de asas e raízes.

O silêncio conspira,
até a viração da tarde
cessou. Já mal suspira.
Escrevo solo e o peito arde.

O rosto guardado na terra,
nada me lembra ou esquece.
Escrevo solo. Sombra
entre sombras, o dia amanhece.

Manhã de maio semeia,
não choro nem sinto.
Digo nada – acorde esvaído
num sonho indistinto.

O rosto abrigado na terra,
mal sei do lamento das folhas.
Mal sei, mal sim, mal não:
não sei onde abrigar o coração.

Carlos Felipe Moisés, “Sombra”

Os pássaros certos



Trouxe o canto
Não é claro, mãe
Mas tem os pássaros certos
Para seguir a queda dos dias
Entre o meu tempo e o teu.

Ana Paula Tavares
Imagem: Thomas Allen

quinta-feira, 3 de março de 2011

é provável que ela venha daqui a pouco. o dia foi um tecto azul celeste quase em quebranto: não é por aí que ela costuma entrar? até lá deleito-me, nas simetrias gélidas do corpo. as mãos pelos pés. dois braços (vazios, em fuga). entendo-me na longitude glaciar da cintura. tepidamente, chega ela. arfa mansa, debaixo dos lençóis, as suas mãos crescendo dentro das minhas. erguida em ganas de violino, borda-me a almofada com fio de prata. as suas mãos lembrando-me das minhas. e isto, só gente avulsa é que entende.   

terça-feira, 1 de março de 2011

A light in the moon



The care with which the rain is wrong and the green is wrong and the white is wrong, the care with which there is a chair and plenty of breathing.

Gertrude Stein, Tender Buttons
Foto: Maia Flore

sábado, 26 de fevereiro de 2011


Porque eu também tenho uma missão na vida: anotar os lugares de areia branca, voo rasante de passarinho, todos os modos do sol. Tenho tanto que fazer no almoxarifado da humanidade.

Adélia Prado, Solte os cachorros

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A fundo perdido

When two people fall in love, and begin to feel that they are made for one another, then it is time for them to break off, for by going on they have everything to lose and nothing to gain.
Søren Kierkegaard


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011


Enlouquecidos pela dor
Cobrimo-nos com o barro das palavras

Ana Hatherly, “Utopias privadas”

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Para uma espécie de corpo inenarrável


Minha irmã é que nasceu a falar
de um derramamento colossal
da solidão.

As mulheres, é espesso perfume lembrá-lo,
têm ângulos ausentes no que vêem e no que falam nas ocultas

nebulosas do seu corpo
o amante adivinha como um homem traído.

Assim assim mesmo: nessa penumbra de metal candente
anseia-se, decai a ansiedade

e a mulher (Ila, imã de Ilo o mundo, a minha irmã),
que é repouso vasto enfurecido
corre a apanhá-los.
ao espelho, à flor,
da cintura irrompendo como de um jardim
para uma espécie de corpo inenarrável.

Luiza Neto Jorge, “Recanto 13”
Foto: Erin Mulvehill

domingo, 13 de fevereiro de 2011


We’re all products of what we want to project to the world. Even people who don’t spend any time, or think they don’t, on preparing themselves for the world out there—I think that ultimately they have for their whole lives groomed themselves to be a certain way, to present a face to the world.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Habito um corredor onde os relógios pararam nas 15:20. Todos os dias leio demais. A escrita vem sempre tarde, e às postas. O corredor que habito fumega de gente, homens de barba antiga, de vez em quando um rapaz daninho, muitas mulheres que por ali passam das oito às quatro, à pressa, ansiosas pelas casas com panelas de arroz agulha. Os dias pairam iguais no centro do corredor, uma bolacha redonda que se vai ruminando em volta. O caminho, esse, é só um, em frente e ao comprido. Se por acaso segue ao redor das papoilas, logo se malfada. Às vezes ataca-me como uma serpente, e mal ele sabe o quanto eu quero o seu veneno. Leio demais. A escrita não vem. Doem-me as mãos, de tanto vasculhar nas goelas dos dias. O coração bate em lugares estranhos. São três facas e uma morte à espera. Arde lenta, a tesoura nupcial, visível mas embutida no pulso. Desengane-se quem aqui procura a redenção. Perseguir ouriços mata. A escrita não vem. Valham-me os braços caravela – lá fora há-de haver vento, e as panelas têm tanto arroz.      

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A Poet is the most unpoetical of any thing in existence, because he has no Identity – he is continually in for – and filling some other Body – The Sun, the Moon, the Sea and Men and Women who are creatures of impulse are poetical and have about them an unchangeable attribute – the Poet has none; no identity – he is certainly the most unpoetical of all God’s creatures.

John Keats, “A Letter to Richard Woodhouse” (1818)

(Já agora, Cf. ...)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011



This otherness, this
“Not-being-us” is all there is to look at
In the mirror, though no one can say
How it came to be this way. A ship
Flying unknown colors has entered the harbor.

John Ashbery, “Self-Portrait in a Convex Mirror”
Foto: Maia Flore

domingo, 6 de fevereiro de 2011

As palavras aproximam (o silêncio ainda mais...)


Amando muito muito
ficamos sem palavras


Ana Hatherly, "As palavras aproximam"

Foto: Lukasz Wierzbowski

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011


Hoje às dez horas pinto as mãos. De todas as cores, não de nenhuma. Vou lentamente afogá-las num tinteiro. Primeiro os dedos, depois as covas, as linhas e os montes, até ao pulso. Até ao osso. Frio. Há-de ser fria, a tinta, e frias, as mãos, pois deixarão de ser mãos de massa e de flanela. Hão-de ser mãos de corte. Mãos de faca. Não mais roubadas às horas de fremente urdidura. Serão invisíveis de tão visíveis e sonoras. Indistintas das paredes, do silêncio, das gerberas nessa jarra, do negrume seco da janela. De ti. Da tua pele. Todas as cores, não de nenhuma. E vão gritar, as minhas mãos. E vão pingar, estalactites cor vertigem violeta.
Hoje. De todas as cores. 

Foto: Hernan Marin

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

fugiram-me um dia
os braços até ti
onde ficámos
deitados sobre a tarde
em que todas as lentidões
são bruscas apneias

as nossas mãos de barro
derreteram-se em cristalinas
placas tectónicas, a fingir
pássaros num desvio alado

ouves? somos nós
aqueles que trauteiam oceanos
enquanto falam
sobre sinos e visões periféricas
ao menos

fugiram-me um dia
os braços até ti
onde ficámos
suspensos
sobre um chapéu de criança
soprado ao delírio do vento

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011


It is enough to make you understand why most languages have a word like "soul." There are various degrees of death, and time spares us none of them. Yet something endures, for which a word is needed.


Ursula K. Le Guin, "The New Atlantis"

Foto: Sanna Lehto

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011


Essa linguagem é de marinheiro, mas tu não és marinheiro,
Se tenho a linguagem é como se o fosse.

José Saramago, O conto da ilha desconhecida

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Quem diria que hoje serias
bloco de grés sentado
que frágil desassossega
durante a tarde
maquinalmente
a jugular distendida
à espera
de rubras papoilas cadentes

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Jean-Luc Godard, Alphaville (1965)

sábado, 15 de janeiro de 2011

Ockham's razor

Desde os começos a Lei do Amor está escrita, mas como está, tão simples, ninguém quer.



Adélia Prado, Solte os cachorros

Há muito tempo que não sublinhava tanto um livro; agora não o posso emprestar a qualquer pessoa, é certo... A cartografia da nossa alma não se entrega assim...

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
























                                             Soy estrella y musgo

                         Me encrespo.

El poema ha llegado de mi carencia, de mi pobreza.
                                            
Hanni Ossott, “Una playa sin fin”
Foto: Joe Bonomo

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011



Por enquanto acabaram-se
as tardes de baloiço.

Suporta-se agora
um lento desencaixe
de clavícula. Tudo

o que nos resta
é o cansaço
encravado nas unhas

aguaceiro de cutículas

desfasamento ancestral de baleia
(presa, por fino arame, a sua ossada
numa firmeza de relíquia)

Se porventura nos prolongam os dedos
é por mera providência:

como resistir
a esta infecção na frase
senão pela doença?

Por enquanto plantam-se
mandrágoras debaixo da língua.

Foto: Randy Martin

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Porque escrever assim é sopa

É capaz de a psicologia ser ciência mesmo. Se for, me avisem. Tem coisas que, sabendo dizer, conferem muita importância: “a sagrada rota”, “as valquírias”. Falar comigo: seu texto é muito bom, eu não acredito, porque escrever assim é sopa. Agora, falar que é ruim, me incomoda e é capaz de eu sofrer. A poesia existe, ou é falácia, pruridos, psicologismos? Se assim for e eu descobrir, me epitafem: desgraçada, fora da graça, banida.
Adélia Prado, Solte os cachorros

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011




































E quando o poema é bom
não te aperta a mão:
aperta-te a garganta

Ana Hatherly, “Post-scriptum para Paul Celan”

sábado, 1 de janeiro de 2011


We shall not cease from exploration
And the end of all our exploring
Will be to arrive where we started
And know the place for the first time.

T.S. Eliot, "Little Gidding", Four Quartets


(Voltamos ao princípio: recomeça a viagem...)

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

nestes dias habito
as casas dos outros
(perfeitas esferas
em rota disjuntiva)

permaneço afásica
nos interstícios dos armários
onde cresço, devorando,
o sol esquecido nas fibras
da última primavera

é certo que não me mantenho
pois cedo me rendo à loucura
de medir espaços com o corpo
e, enublada por voláteis crispações,
acaricio as galáxias do tecto

tamanha navegação celeste
faz-se à cautela – em transverso,
só o escuro reconforta – mas é
tal a fremente obsessão pela lua
que rápido se cegam as linhas
rectas
                        em espiral
desço aos infernos pela mão
da serpentina felicidade.

expiro. na frágil luz embaciada
escrevo o meu nome
a frio.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Onde os reclames do coração se cruzam



Vincenzo Balocchi
 























A pele por fulgurantes
instantes muitas vezes abre-se até onde
seria impensável que exercesse
com tão grande rigor o seu domínio.
Não temos então dela senão rápidas
visões, onde os reclames
do coração se cruzam, solitários
e agrestes, reflectidos
por trás nos ossos empedrados.
Em certas posições vêem-se as cordas
do nosso espírito esticadas num terraço.
A roupa dói-nos porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.
Luís Miguel Nava, “Paisagem Citadina” 

terça-feira, 21 de dezembro de 2010



















O eco de mil sinos de prata
emudece
ante o labor da aranha


O tempo emudece
na cegueira do ar
na sua geografia nula
Que queres de mim
matéria insensível?
Nas coisas conhecidas
o verbo ser
emudece
Ana Hatherly, “O eco de mil sinos de prata”

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Dextera Domini

Aos domingos abriam as gargantas:
trocavam os corvos pelas pombas (ex-
piação cromática da culpa) e ficava.
Uma penumbra sobre as cabeças rendadas,
lembrança do quarto aferventado pela
carne. Eram acres, os santos encalhados
entre as abóbadas e o lambril, de cara
tépida e rugosa como um planeta.
Ela quieta ao fundo, na ponta esquerda
do banco mais canhoto. Um círio roxo.
Apenas os sapatos de verniz bicudo
se retorciam com os beijos das avós.
Cheiravam a sal e a minério, à negra
numismática que as encerrava numa
pálpebra de chumbo. E cantava.
Que bem passava por menina
de coro, por ser mais fácil
engolir bandos de anjos
do que implodir ave-marias.
Rezar em línguas.
A sua cabeça
numa bandeja de prata.
  

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Food grew cold on the table.


 






















We sat across the table.
he said, cut off your hands.
they are always poking at things.
they might touch me.
I said yes.

Food grew cold on the table.
he said, burn your body.
it is not clean and smells like sex.
it rubs my mind sore.
I said yes.

I love you, I said.
That's very nice, he said
I like to be loved,
that makes me happy.
Have you cut off your hands yet?
Marge Piercy, "The Friend"

domingo, 12 de dezembro de 2010

O medo apaga o amor?

O medo apaga o amor, só deixa os contornos do próprio corpo?

Maria Velho da Costa, Myra

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

denotam-se
as giestas e
os contrastes
de todas as madrugadas
em flor.
teimosamente
revemos os espaços
– os de dentro, os de fora –
tentamos esquecer os urros
daquele bicho dormente
que suspirando
despe as praias e alamedas.
sim, é verdade,
somos, sistematicamente
atacados pelas gramáticas;
mas falemos antes
dos inícios
e da palma da minha mão
onde habita uma aurora
a espernear, enraivecida
à espera que a noite
lhe faça romper as searas.
no parapeito da janela
ofega, esfomeado
o dia limpo de hoje.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A Flor da Tinta é Negra



A flor da tinta é negra
Mas nos dedos dele, adquire muitas formas
Uma abelha… uma palmeira… uma rapariga a cavalo
Um planeta regressando de um tempo longínquo
Uma bola de fogo acariciando os que entre nós são áridos e estéreis
Transformando a terra em chamas e em estacas de fumo


Quando abri o tinteiro
E fitei a tinta
Encontrei um génio adormecido lá dentro
Eu estava nervoso, a tinta manchou-me a ponta dos dedos
Tracei uma linha, depois outra
Tornaram-se ruas
E mais uma e outra linha
E chegaram os invasores
Um grupo de pobres veio defender-nos
O meu coração embriagado de orgulho e felicidade
Gaguejei um pouco
Divaguei um pouco
Ajudaram-me ou mataram-me os alfabetos
Queimaram-me a boca com balas
A tinta percorreu-me todas as veias
E o meu sangue correu nas veias da imprensa.

Abdel Karim Sabawi (poeta e jornalista Palestiniano)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

























What a terrible mistake to let go of something wonderful for something real.


Miranda July, No one belongs here more than you

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

En lo dicho, el proceso de lo dicho

Huyamos durante
Las noches enteras, mi amor…

las voces.
En otro lugar – todo irá bien
Sólo para que la mitad mía – la elijan amor mío, las noches enteras — .

El verano tiene todo su músculo recordándote.

No hay ningún lugar que no sea tu centro,
En lo dicho, el proceso de lo dicho, tu muerte en el medio como un caballo.


J. M. Antolín, “El Caballo”

(Este poema é dolorosamente belo…)

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Cortina que abre-fecha
a língua é
um itinerário
uma brecha
no flanco do longínquo
Ana Hatherly, “As palavras de papel”

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Frenética incidência

Desnorteemo-nos hoje, sem falta
na melancolia ascética dos dias grosseiros
que rudes passam a galope solto
trote trote trote. Um círculo de sangue.
Fixemo-nos no ângulo morto do espelho e
sigamos, noite adentro. São dez horas.
O coração bate, cem vezes por minuto
esquecido de outras síncopes bate,
pequeno e freneticamente belo.
Sigamos viagem, ângulo adentro,
ao longo das árvores que não são árvores
mas madeixas brandas de criança feliz.
Em suas mãos sonoras, caixa de música sem
bailarina, encontremo-nos hoje, sem falta,
e dancemos os dois na nossa terna sanidade
até engessarmos todas as cartas e bilhetes
de amor. Hipnoticamente olvidados
das minudências encravadas na epiderme,
dancemos, e sigamos em carne viva
até ao vértice do ciclone
onde calmamente nos sentaremos
contemplando, a melódica
explosão das estrelas.

Your sound caught in the glass




































I see you through two layers
of glass doors, your sound
caught in the glass before it can reach me.

Beth Baruch Joselow, "The steering wheel comes off in your hands"